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De quem é a casa afinal?

Há casas bonitas, impecáveis, cheirosas e móveis alinhados, onde tudo parece estar no lugar certo. Mas basta um olhar mais atento para perceber que, por detrás da perfeição, há um silêncio pesado. Há casas onde os risos são medidos, as brincadeiras são proibidas, os sofás são intocáveis e os pratos mais bonitos estão guardados para quando chegar alguém de fora. Casas onde o cuidado com a aparência substitui o cuidado com as pessoas.

Onde a limpeza virou prioridade e a leveza foi embora. No fundo, o que se ouve, mesmo em silêncio, é uma pergunta: de quem é a casa, afinal? Das visitas ou de quem mora nela?
Esse modo de viver não nasceu agora. É o reflexo de uma herança social antiga, cultural e emocional que ainda pesa sobre muitas famílias.

Herdámos uma mentalidade que nos ensinou a valorizar o olhar do outro mais do que o conforto dos nossos. É uma herança que vem da história, de tempos em que mostrar era mais importante do que sentir, e de famílias que confundiam o respeito com rigidez.

Crescemos a ouvir “não mexas”, “não sujes”, “isso é para visita”, e sem perceber, aprendemos a conter a espontaneidade, a esconder a alegria e a ter medo de existir com leveza e naturalidade. Aprendemos que o amor se merecia pelo bom comportamento, e não pela presença sincera. Essa herança criou gerações de adultos que sabem arrumar a casa, mas não sabem descansar nela, que sabem organizar tudo por fora, mas vivem desorganizados por dentro.

O impacto disso é profundo, sobretudo na forma como educamos os nossos filhos. Achamos que estamos a ensiná-los a serem respeitosos e responsáveis, quando, na verdade, muitas vezes estamos a ensinar-lhes o medo. Medo de errar, medo de sujar, medo de incomodar, quando uma criança cresce num espaço onde tudo é intocável, ela aprende que o mundo é um lugar onde precisa sempre de pedir licença para existir. Aprende a controlar o riso, a esconder o choro, a calar as vontades.

Aprende que ser ela mesma é demasiado arriscado. E é assim que, sem intenção, criamos filhos que crescem para se tornarem adultos ansiosos, inseguros, sempre à procura de aprovação, sempre a tentar corresponder a um padrão invisível que nunca se cumpre.
Uma casa pode estar limpa e, ainda assim, ser fria. Pode estar organizada e, mesmo assim, ser vazia.

O lar é outra coisa. O lar é feito de alma, de cheiros que contam histórias, de vozes que se ouvem sem pressa, de olhares que acolhem em vez de julgar. É o primeiro lugar onde uma criança aprende o que é o amor, e é lá que forma o olhar com que verá o mundo. Se o lar for lugar de medo, ela crescerá com medo. Se for lugar de aceitação, ela aprenderá a amar. Se for lugar de culpa, crescerá com vergonha. Mas se for lugar de perdão, crescerá livre. Por isso, o lar é o primeiro espelho da alma e o primeiro educador do coração.

Os filhos não aprendem apenas com o que dizemos, aprendem o que vivemos. Aprendem a partir do nosso tom de voz, da forma como olhamos, de como reagimos quando algo sai do lugar. Quando nos vêem sempre preocupados com o que os outros vão pensar, aprendem a viver para agradar. Quando nos vêem a relaxar, a rir de nós mesmos e a acolher o inesperado, aprendem que a vida pode ser leve.

Quando nos vêem a priorizar o cuidado à aparência, aprendem que o amor é mais importante do que a imagem. Nós somos o primeiro livro que eles lêem, o primeiro espelho onde se olham, a primeira tradução do que é Deus e do que é o mundo.Por isso, talvez seja hora de revermos o que chamamos de lar, talvez seja a hora de abrir espaço para a vida, de deixar o sofá ser vivido, o chão ser pisado, a mesa ser um lugar de partilha e não de apresentação.

Talvez seja hora de trocar a preocupação com o que vão pensar, pelo cuidado com o que estamos a transmitir. De perceber que uma mancha pode ser memória, que uma desordem pode ser a vida a acontecer, e que o som das crianças é o som da casa viva. Porque o verdadeiro luxo de um lar é o riso dos filhos, o cheiro de comida feita com amor, o abraço que acolhe mesmo quando tudo está fora do lugar.

Educar é mais do que ensinar boas maneiras, é ensinar a viver com verdade. E para isso, precisamos que a nossa casa seja reflexo de autenticidade, e não de aparência. Precisamos que os nossos filhos cresçam a saber que o amor não depende de comportamento, mas de presença, que a alegria não se mede pela ordem, mas pela liberdade de ser, que o valor de uma família não está nas coisas, mas nas relações que constroem.

No fim, quando as visitas se vão e o silêncio volta, somos nós quem ficamos. E é nesse momento que se revela o que realmente fizemos da nossa casa: se ela é apenas um espaço bonito, ou um refúgio de alma. Uma casa pode impressionar os outros, mas só um lar transforma as pessoas que vivem dentro dele.

Que a nossa geração tenha coragem de quebrar a herança da aparência e ensinar aos nossos filhos o valor da verdade, da leveza e do amor real. Porque o que estamos a construir entre paredes hoje, é na verdade, o coração do amanhã.

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